Meu senhor, olhe pra mim, tenha dó,
Pai, por que, meu Pai? Você não deixou?
Como foi que o Creonte farejou, meu Ganga?
Responde, aponta uma estrada pra quem padece como eu
não há nada que ajude mais do que o padecimento
de quem me oprime.
Foi só um momento de alívio que eu pedi.
Não pode ser?
É possível que o Pai quis proteger Jasão,
que larga os filhos nas esquinas
e que se entrega ao canto das ondina?
Quis defender Creonte, esse ladrão
do rosto humano e a cauda de escorpião?
É justo conservar esse homem vivo?
E a filha, que mantém Jasão cativo
transformando em porcos os seus amigos?
Xangô, meu Pai, salvou meus inimigos por que motivo?
De que serve a vida deles?
Eu tenho que sair ferida, abandonada, doida, sem abrigo
Não, não pode fazer isso comigo, meu Ganga.
Não, não pode ser.
Você quer eles vivos para que? Por que?
Meu Ganga, meu Pai Xangô, o senhor quer dizer
que há sofrimento maior
do que morrer com veneno cortando as entranhas…
escorrendo, arruinando,
fazendo a carne virar uma pasta por dentro?…
Não, Senhor… É isso?
Afasta de mim essa idéia, meu Pai… Mas não,
meu Ganga, é pior… Pior, tem razão
Esse é o caminho que o Senhor me aponta
Aí em cima você toma conta das crianças?… (Grita) Não!…
Vêm, meus filhos, vêm…
Tem comida, vem…
Isso é o que o Senhor quer?
Meus filhos,
mamãe queria dizer uma coisa a vocês.
Chegou a hora de descansar.
Fiquem perto de mim que nós três, juntinhos,
vamos embora prum lugar que parece que é assim:
é um campo muito macio e suave,
tem jogo de bola e confeitaria
Tem circo, música, tem muita ave
e tem aniversário todo dia
Lá ninguém briga, lá ninguém espera,
ninguém empurra ninguém, meus amores
Não chove nunca, é sempre primavera
A gente deita em beliche de flores mas não dorme,
fica olhando as estrelas
Ninguém fica sozinho.
Lá não dói, lá ninguém vai nunca embora.
As janelas vivem cheias de gente dizendo oi
Não tem susto, é tudo bem devagar
E a gente fica lá tomando sol
Tem sempre um cheirinho de éter no ar,
a infância perpetuada em formol
A Creonte, à filha, a Jasão e companhia
vou deixar esse presente de casamento
Eu transfiro para vocês a nossa agonia
porque, meu Pai, eu compreendi
que o sofrimento de conviver com a tragédia todo dia
é pior que a morte por envenenamento.
Chico Buarque, engenhando maravilhosamente!
(e nem me passa o pensamento na morte dos filhos, mas em algo ainda muito maior nisso tudo…)