Trechos de textos dentro de textos, ou trechos do encontro de Eduardo Giannetti, Diderot e Nelson Rodrigues

por Alexandra Deitos
É sobretudo quando tudo é falso que se ama o verdadeiro, é sobretudo quando tudo está corrompido que o espetáculo é mas depurado. O cidadão que se apresenta a entrada da Comédie deixa aí todos os seus vícios, a fim de retomá-los apenas à saída. Lá dentro ele é justo, imparcial, bom pai, bom amigo, amigo da virtude; vi muitas vezes a meu lado malvados profundamente indignados contra ações que não deixariam de cometer se se encontrassem nas mesmas circunstancias em que o poeta situava a personagem que abominavam.²³
(…)
Repare: se os espectadores ficam sinceramente indignados ao verem sua própria maldade representada no palco, então é porque eles não se vêem assim. O que ofende e agride nos outros, visto de fora, torna-se inodoro e razoável quando é visto e vivido de dentro. A fumaça do automóvel ou do ônibus em que estamos não nos irrita.
(23) Diderot, “Paradoxo do ator” (A filosofia de Diderot, p.200). É interessante comparar a observação de Diderot com a de Nelson Rodrigues: “A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Anna Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No Crime e castigo, Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los” (citado em Ruy Castro, Anjo pornográfico, p. 273). Os dois dramaturgos claramente divergem sobre o que acontece da porta do teatro para fora: enquanto para o francês o espectador sai exatamente como tinha entrado, para o brasileiro ele sai purificado e, pelo menos temporariamente, um cidadão distinto do que era ao entrar. Mas o dois parecem estar perfeitamente de acordo quanto ao que se passa durante a representação teatral, ou seja, o mecanismo de transferência e transporte ficcional pelo qual o espectador sai de si e vive subjetivamente a personagem da trama. O papel purificador do teatro e da ficção narrativa em geral é discutido por Dodds ao analisar o apelo dos rituais dionisíacos no mundo grego (Greeks and tbe irrational, pp. 76-7) e na introdução a sua edição comentada das Bacantes de Eurípedes (p.xlv).

Extraído do livro Auto-engano, de Eduardo Giannetti

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