Hoje sobre ontem. Ontem sobre hoje.

por Alexandra Deitos
Há inúmeras coisas que parecem ultrapassadas e, no entanto, são atemporais. Com constância o mundo se renova, as coisas repetem-se, o que já foi volta adquirindo desdobramentos e novas roupagens para o amanhã. O carro que ultrapassamos agora e perdemos de vista no retrovisor lá na frente nos ultrapassará. A paisagem que vemos no retrovisor vai se modificando, mas sempre há algo refletido no retrovisor.
Um carro, dois carros, três carros, inúmeros carros estraçalhados nas pistas. Jovens lavando metrôs e ônibus com vômitos. Pais de família gastando seus salários mínimos em foguetes e bebidas alcoólicas. Seres humanos sendo agredidos por outros seres humanos. Desperdícios de vida em esquinas, contentamentos com o período de folga do trabalho – ilusório, visto que pagamos por qualquer folga, por qualquer acidente, por qualquer coisa nesse império capitalista.
Ontem era o dia do primeiro jogo da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2010, esta que neste ano está movimentando milhões de pessoas, e, lógico, de dinheiro na África do Sul. Embora talvez abafado pela festa e algazarra mundial, a África ainda é aquele mesmo país que sempre foi líder dos maiores índices de pobreza, estupro, desnutrição, e sempre esquecido do mercado turístico. O clima é de festa, de uma grande festa, e ninguém está interessado nos assuntos maçantes e reais do país alheio, até do seu próprio país já é pedir demais. Com festa ou sem festa tem muita coisa que fica na paralela da vida, abafados por euforias de escape. Quem sabe a miséria maior mesmo nem esteja no país, no mundo, na humanidade, e sim, no próprio indivíduo. A pobreza maior no mínimo começa mais em baixo – em cada ser humano, em cada atitude, em cada pensamento.
Quando cheguei em casa ontem, às 14horas de uma tarde de terça-feira ensolarada, eu possuía o tempo. Poderia fazer o que desejasse, o tempo era meu, ver o jogo, não ver, dormir, estudar, não fazer nada, não havia uma questão existencial, apenas opções. O vazio de ser dono de si, de ser dono de uma quase liberdade, o quase poder de se ter o tempo… não sabemos o que fazer com isso. Quando ganhamos uma coisa que não sabemos usar, desperdiçamos – como um livro, que relido anos mais tarde pode parecer bem mais proveitoso que no primeiro momento.
Assim contento-me hoje de ontem ter desperdiçado minha vida sem prejudicar ninguém. Contento-me em ter feito dos cartões postais uma obra de arte singela, a qual eu verei com alegria toda noite quando retornar para casa após um dia de esforço em não prejudicar ninguém. Enquanto nas ruas, mais tarde, eu via a degradação de vidas desperdiçando outras vidas. Enquanto em algum lugar um amigo era agredido banalmente. Enquanto uma parte do mundo se fantasiava de verde amarelo e mostrava sua cara cinza de pobreza… há também os que misturam o verde e amarelo e criam outras cores para usar no rosto. Há os que sonham em voltar para casa sem prejudicar ninguém e conseguir um dia algo além: ajudar alguém. E sonham que essa meta solitária um dia seja tão abrangente quanto um jogo da seleção na Copa do Mundo e possamos andar sem retrovisores, talvez.

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2 comentários

Flor Baez junho 17, 2010 - 12:54 pm

Nossa! Adorei o que você escreveu!
O tempo que desperdiçamos com bobagens, as mazelas do mundo que achamos não ter nada com isso, como se não fosse nossa culpa.

Aproveitando a Copa do Mundo, o Senado aproveitou para a dar aumento salarial para os próprios e contratou uma empresa de limpeza que custa 40 mil a diária!!!! Sendo que eles trabalham apenas 3 dias e meio….

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Leco Vilela junho 16, 2010 - 7:07 pm

espero por esse dia, o dia sem retrovisores. Mas como disse fico contente… Não está de tudo perdido. Duas mães com seus filhos. Duas mães sabiam que eu estava certo. Duas mães que não eram minhas nos protegeram. Duas mães disseram "VOCÊ ESTÁ ERRADO" ao agressor. Duas mães que não eram minhas… O mundo não está tão perdido assim e num bar no meio do caminho depois de tudo isso, 5 pessoas cantavam Cazuza.

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